terça-feira, 24 de agosto de 2010

As escuras

O tiro de partido para a Restaurant Week de verao foi no CTaste, mais conhecido como o Restaurante-as-escuras.

A alcunha deriva do facto do restaurante ter a sala de jantar ...bem...as escuras! E nao falo de sombra, penumbra, lusco-fusco ou algo semelhante. Trata-se sim do escuro-como-breu, mina-de-carvao, nao-vejo-um-palmo-a-frente-do-nariz tipo de visibilidade. Os empregados sao (mesmo) cegos, e as entradas na sala de jantar estao construidas de forma a nao deixar entrar um raio de luz do exterior.
Para ajudar a festa, e talvez porque seja dificil ler o menu no escuro, a ementa e surpresa. Na zona de acolhimento, o chefe de sala pergunta se temos alguma alergia, e se comemos o que nos meterem a frente. Obvio! Desde que nao seja polvo-chocos e lulas, marcha tudo.... Tambem perguntam o que queremos beber. Ai a escolha ja comeca a ser mais estrategica. Embora nao seja clliente de vinhos, e me fique frequentemente pela Cocaquinha Frescola, e de pensar se quero sair de la potencialmente encharcado em cola. Naaaa.... acho que desta vez me fico pela agua. Nao sei porque, sinto-me virado para o saudavel!

Antes de comecarem as festividades e depois do briefing, toca de largar tudo o que possa fazer luz num cacifo de ginasio, e esperar pela boleia. "Ai sao voces os da mesa 3? Entao um de voces de ca a mao, e o resto metam a mao no ombro da pessoa que esta a frente. E aqui vamos nos!" Isto pode parecer algo saido de uma das diversoes da Feira Popular, mas estamos de facto num dos restaurantes mais requisitados de Amsterdao.
Assim que se abre a cortina, comeca o filme. Ou melhor, a falta dele! Nao se ve mesmo nada. Tudo a andar com passinhos minusculos, com medo de tropecar em algo que nao esta la. O empregado agarra-nos na mao, e coloca-a na nossa respectiva cadeira. Depois, vem trazer os copos, que coloca sobre o ombro para nos podermos agarrar facilmente:
"Querem que sirva a agua?
- Deixe estar, a gente trata disso....."
Claro que assim que ele nos passa a garrafa para a mao, ja nos arrenpendemos do que dissemos. Abrir a garrafa no escuro, (re)encontrar o copo e descobrir como por agua suficiente no copo (minusculo por sinal) sem deitar por fora. Quando nao se tem ideia nem do formato do copo, ate saber se o dito esta nivelado e um desafio. E -de forma pragmatica- toca de servir a agua com um dedo dentro do copo.
Chegam as entradas. E qual uma eliminatoria do Jogos-sem-Fronteiras em que alguem se esqueceu de pagar a conta da luz, la partimos nos a descoberta do que estava no prato. Garfada aqui, garfada ali, o cerebro tenta avaliar o que esta a nossa frente. A cada dentada vem um enigma: que raio e isto que eu tou a comer? Peixe, ok... mas qual peixe? So quando nos vemos nestas embrulhadas e que percebemos que o sabor e apenas uma parte do que comemos. A textura ajuda bastante, mas falta a cor, o formato, e a expectativa. A gamba foi facil, o peixe era peixe, e uma dentada que sabia a sushi deixou me intrigado. Dilema seguinte? Como e que sabemos que ja comemos tudo? Nada facil, nada facil...
Prato principal: "Ponham as maozinhas no colo, enquanto eu troco os pratos!" E aqui vamos nos, mais-uma-moeda-mais-uma-voltinha. Primeira sondagem, uma coisa grande. Demasiado grande para vir agarrada de uma so vez ao garfo. Toca a usar pela primeira vez a faca, mas com cuidado... E bife! e com um molho adocicado em cima. Mais do que isto, seria pedir demais. A volta, vegetais crocantes, em formato de chocapic, e uma coisa qualquer que sabia a batata, mas nao nem pure de batatas, nem batatas fritas. OK, come-se. Isto da falta de cor mata-me. Um vegetal tem de ser verde, cum caneco!
Por esta altura, ja o cerebro tinha tentado colocar uma cara no empregado, uma cor na parede, uma textura na parede, um volume e um formato na sala de jantar. Ouvem-se os outros convivas, sem haver interaccao directa. E o facto de ser em holandes, tambem nao ajuda. Damos por nos a adoptar a linguagem corporal que facilmente reconhecemos nos cegos: quando alguem fala connosco, nao apontamos o nariz nessa direccao, nao olhamos para o interlocutor. Curioso, como o comportamento muda depressa dadas as circunstancias.
Hora da sobremesa! Mais uma investigacao cuidada de um prato surpresa, desta vez, com uma colher. Avisado que haveria uma espetada algures no prato, toca de ir a volta. No meio do prato, uma tacinha com um creme la dentro: inconfundivel, alguma coisa de banana. Tao banana, tao banana que ate dava para ver o amarelo. Estrategicamente, tiro a taca para o lado de fora do prato, mas nao para muito longe, nao se va a mesa acabar sem aviso. Proxima descoberta no prato, um monte de algo fofo, nao compacto. Toca de experimentar: peta-zetas! Era a ultima coisa que podia esperar numa sobremesa. No escuro, o barulho que as peta-zetas fazem no fundo da boca e ensurcedor: deixa de se ouvir o ruido de fundo da sala de jantar. Mal se ouve a pessoa que esta ao nosso lado. Mas acaba por passar. Refeito da surpresa e do choque, toca de acabar a sobremesa. De facto, estava la uma espetada de morango, com a classica cobertura de chocolate. Os outros montinhos do prato tinham cubinhos de caramelos e uma bolacha que sabia a Daim do IKEA.
"Querem cafe, cha...? diz a voz do empregado misterio.
-No escuro??? Voce deve tar mas e maluco.... Nem acertar com a colher na chavena eu era capaz. Deixe la tar isso, homem!" Obviamente, ele riu-se e foi embora. Quando voltou, la nos pos outra vez em comboinho e levou ate a saida. Saimos com cara de esgroviados, como tinhamos visto os clientes que nos precederam. Depois de nos habituarmos a luz, e resgatarmos os nossos haveres do cacifo de ginasio, la fomos para o debriefing descobrir o que nos tinha calhado na rifa. Ou melhor, na barriga!
O peixe afinal era truta salmonidea, com um mega camarao, uma vieira, e um bocado de atum sashimi-style. Eu bem dizia que aquilo sabia a sushi! O bife afinal era de avestruz. Cum raio, tenho que ir a um restaurante as escuras para experimentar avestruz... La pelo meio tambem havia uma tarte de batata doce, e o molho em cima tinha morango. Na sobremesa, eles nao disseram propriamente que eram peta-zetas, mas tambem nao era preciso. E de facto, era uma espetada de morangos, com fusge a volta. Por este andar, eu ja esperava que me dissessem que eu tinha comido cactos do Sahara com ovos de codorniz, mas nao... a sobremesa nao continha surpresas inesperadas.
Isto nao foi um jantar...isto foi uma experiencia sensorial. Ou melhor, uma experiencia assensorial. So depois de passar por uma destas, e que se da a devida atencao a quantidade de informacao que nos temos para alem daquilo que metemos na boca. Para nao falar da luta que e para se conseguir comer algo que nao nos deixam ver.

Mais uma historia para contar ao netos.....e que eu recomendo vivamente!